sábado, 21 de outubro de 2023

Reflexão num dia de chuva

[TEXTO PUBLICADO EM 15 DE JANEIRO DE 2011].
A infindável temporada de chuvas que assolam grande parte do Sudeste brasileiro faz do guarda-chuva quase que uma peça obrigatória do vestuário masculino e, observa-se, a cada dia, do feminino também. Parece, de fato, que as mulheres se cansaram das sombrinhas que, na verdade, convenhamos, aliviam muito mais do sol forte do que das águas que caem do céu, quer por sua pequena área de proteção, quer pelo material de que são feitas. Aliás, guarda-chuvas e sombrinhas não são irmãos, nem formam um casal. O primeiro é uma adaptação dos guarda-sóis que já existiam na Suméria, no Egito, nas antigas Grécia e Roma, passando pelos pálios, reais e pontifícios, até mais ou menos desembocarem naqueles utilizadas pelos artistas paisagistas, quando pintavam junto à natureza, como retratados pelo satirista inglês James Gillray (1756-1815), e que constam de um auto-retrato do genial Francisco de Goya (1746-1828) e noutro, discreto, de Arnaud (ou Armand) Julien Pallière (1784-1862) numa vista de Vila Rica. Foi, portanto, a partir do século XIX, com o triunfo da Revelução Industrial, com a indiscutível supremacia britânica na produção de bens de consumo e na sua divulgação, que o guarda-chuva, com esta específica função, ganha o mundo. Tanto que diversos historiadores contam como os escravos brasileiros, por exemplo, tão logo obtida suas alforrias, compravam um par de sapatos – eram proibidos de usá-los, na condição servil – e um guarda-chuvas, como provas de sua cidadania. Por outro lado, há uma certa ironia quanto a influência britânica na coisa toda: os brasileiros cunharam o nome da peça através do francês, parapluie (literalmente, “parachuva”) ; em inglês, sempre foi chamado umbrella (“sombrinha”). Já, justamente, a sombrinha, que é reintroduzida na Europa no século XVIII pelo gosto das chinesices, alastra-se no XIX pelo japonismo (como antes estiveram apaixonados pelos objetos chineses, os europeus, desta vez, passaram a preferir os japoneses). Mas o fato é que a sombrinha sempre foi muito mais decorativa, coquette, do que uma eficaz proteção contra a chuva.Poucos objetos são mais prosaicos do que um guarda chuva. Não conheço uma pessoa sequer que não tenha usado um alguma vez na vida. Por outro lado, creio que pouca gente reflete o quão sofisticada é a estrutura do mesmo. As partes que armam o tecido protetor equivalem-se às tesouras dos telhados, e as superam porque são móveis, flexíveis e de uma leveza absoluta. Sempre que me deparo com as imagens daquelas grandes construções de ferro fundido do século XIX e princípio do XX, quer seja a Torre Eiffel ou a Estação da Luz, o Viaduto Santa Efigênia ou o desaparecido Palácio de Cristal, erguido em Londres nos tempos da Rainha Vitória, nunca deixo de refletir se não eram elas herdeiras, indiretas, da estrutura dos guarda chuvas, e cada vez mais me inclino à conclusão de que eram, sim, ao menos aparentadas umas e outras.Um reles, mísero guarda chuvas, conserva semelhanças também com uma arma. Alguns são praticamente acionados por uma espécie de gatilho. Todos possuem travas de segurança e, dependendo de suas dimensões, podem servir de eficientes porretes. Além disso, têm uma ponteira que, bem utilizada, é capaz até de machucar. E, por seu formato, guarda chuvas podem ser esgrimidos não tanto como uma espada ou florete, mas como um estoque: as bengalas que possuíam em seu interior uma fina e comprida lâmina, que delas poderia ser desembainhada e utilizada num confronto. Aliás, fabricaram-se muitos guarda chuvas que eram também estoques. E outros capazes mesmo de disparar de um a dois tiros graças a um processo semelhante de embutimento. Num caso, a haste servia de bainha. No outro, de alma do cano, sendo o gatilho e o percussor instalados no punho, no gancho da peça. Um exemplar do primeiro deles pode ser visto no filme Os Vingadores (The Avengers, EUA, 1998) bem como na série televisiva que a precedeu (Ing., 1968-1969). Já do segundo pode-se que eram relativamente comuns nos acervos de provas da polícia civil brasileira. Depois da caça contra as armas no Brasil, acredito que muitas delas foram destruídas. Mas no Museu da Polícia de São Paulo, sei que existe pelo menos um remanescente. De minha parte, confesso, já utilizei diversas vezes um bom e vigoroso guarda chuva como arma de defesa. Quer fosse espantando uns grandes e rabugentos cães com os quais me deparava em certas madrugadas ouropretanas, quer enfrentando outros, com ares de raivosos, em pleno sol marianense. Trespassei, com a ponteira, mais de uma aranha venenosa, e pude espantar pelo menos meia dúzia de tipos suspeitos. Uma das seqüências que mais admiro na história do cinema encontra-se no filme Indiana Jones e a última cruzada (EUA, 1989). Ela tem início com o ataque de um avião contra os protagonistas que leva o personagem Henry Jones Sênior, ou I, (o pai do protagonista, papel desempenhado magistralmente por Sean Connery), numa praia que julgo ser da Dalmácia, eis que saca de seu guarda-chuva, tal qual fosse uma espada, preso à sua mala, abrindo-o e avançando contra um grupo de gaivotas. Desorientadas, as aves voam em direção da aeoronave a ponto de derrubá-la, livrando os heróis da morte. Enquanto caminha pela praia o velho herói justifica seus atos baseando-se numa súbita recordação de uma frase atribuída ao Imperador Carlos Magno (c. 742-814): “Que meus exércitos sejam as rochas, as árvores e as aves do céu”. Como disse, atribuída a Carlos Magno, pois não se tem notícia exata de sua autoria. Nem de seu vínculo àquele monarca. Mas tudo isto não importa. A cena é bela e mostra como a erudição, aliada até a uma coisa reles como um guarda-chuva, é capaz de insondáveis prodígios. Em suma, não desdenhemos destes objetos aparentemente tão comuns. E cada vez mais freges, estes vindos da China. Sua engenharia, no fundo, é notável. Sua utilidade, óbvia. E, pelo jeito que o tempo tem mudado neste país, cada vez mais tornam-se eles indispensáveis. Viva o bisonho guarda-chuva

Informe aos leitores: estou de volta!

Respondendo a vários pedidos para que retomasse minhas pulbicações neste Blog, eis que ora decidi-me por isto, para o bem ou para o mal: e que o leitor decida entre um efeito e outro. Assustei-me ao ver que mais de uma década separa a última publicação da presente. Muita água correu sob a ponte. O mundo mudou, e com ele, algumas de minhas opiniões outrora declaradas -- mas não todas.Passamos por horrores indizíveis nos últimos tempos, dos quais sabemos de sobejo. Em minha vida pessoal, sofri perdas de pessoas caríssimas, insubstituíveis, perdas que me entristeceram profundamente, a ponto de embotar muita de minhas iniciativas em certas áreas. Todavia, é claro, a Roda da Fortuna não para de girar, e se não nos prepararmos para o seu giro, ela não só nos atira para baixo como, também, passa sobre nós: atropéla-nos. Minha intenção, agora, é reproduzir todas as minhas crônicas escritas neste longo intervalo e publicadas no jornal A Notícia, de Leme, SP. Mas ao mesmo tempo, acho necessário trazer a público as mais recentes. De modo que estou tentanto entender como o fazer com uma boa eficácia. Minha ideia é publicá-las aqui por meio de dois índices de classificação: o primeiro, justapondo ao título a data em que a crônica foi publicada; o segundo, remetendo à pasta relativa ao ano da publicação. Caso descubra um método melhor, comunicarei ao leitor. E a todos que me liam, peço desculpas por este longo hiato. E aos que ora me leem, agradeço pelo estímulo.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Notas praieiras – Parte II: A Ignorância do Mundo em quinze dias à beira-mar

Na antiga Grécia, e provavelmente em muitas outras culturas, até mesmo naquelas chamadas “primitivas”, inumeráveis são os rios e riachos, lagoas, montes, colinas, montanhas e pântanos aos quais são relacionados os mais diversos mitos. Ou, no mínimo, são merecedores de um nome que os distingua, o que é algo muito mais importante do que se pensa. Pois nada existe sem um nome. Ainda que, na natureza encontrem-se, de fato, um número incalculável de animais, plantas e minerais ainda desconhecidos, é a partir do momento em que são nomeados que se tornam relevantes. Dar nome às coisas, é sabedoria e poder. Conhecimento e domínio.
Antes de sermos um país, quando ainda éramos uma colônia portuguesa – melhor dizendo, um arquipélago de vilas, cidades e fazendas, isoladas pela mata – boa parte da topografia brasílica já havia sido nomeada pelos ameríndios, ainda que em pequena escala, geralmente regional (relativa aos deslocamentos das tribos num âmbito relativamente estreito). E, o que era pior, conhecidos por pequenos grupamentos: as informações, então, não circulavam muito entre gentes sempre em pé de guerra umas com as outras. Havia, entretanto, formidáveis exceções, como as lagoas do Vapabuçu e do Paraupava, cujos nomes eram familiares a diversas etnias, mas cujo lugar real permanece incerto (especula-se que a lagoa da Paraupava, que apareceu em diversos mapas europeus dos séculos XVI a XVIII, ora ao Norte, ora ao Nordeste ou mesmo no Centro Oeste, trate-se, na verdade, do Pantanal Matogrossense). Sem falar na utópica “Terra sem mal” (Yvi Mara Ey ). Mas devem-se aos navegadores (como no caso do Monte Pascoal cabralino), aos jesuítas (Pedro Lozano, no século dezoito, foi o primeiro a chamar de Caminho do Peabiru a rota indígena que ligava o litoral Sul-Sudeste brasileiro ao Paraguai e ao Peru) e aos bandeirantes (que não só incorporaram muitos hábitos dos silvícolas, como também a sua própria língua), devem-se a estes, portanto, o real batismo de muitos acidentes geográficos de nosso território.
A ocorrência de muitos nomes idênticos, quer de origem indígena ou já portuguesa, designando este ou aquele rio, morro, lagoa, nos mais variados cantos desta terra, explica-se justamente pelo relativo isolamento das comunidades do passado. Daí termos tantos rios chamados de Grande, Feio, Turvo, Pardo, Paraibuna e Piracicaba, por exemplo: ou os dois de nome Paraíba, um emprestando seu nome ao Estado nordestino, outro recebendo o acréscimo de “do Sul”, muito posteriormente à sua descoberta, no vale paulista e fluminense). O mesmo não vale para as incontáveis cachoeiras ou cascatas que receberam o nome de “véu-de-noiva” ou “véu-da-noiva”: neste caso é, pura e simplesmente pobreza de imaginação.
Já no que se refere aos morros e montes, a ânsia de nomeá-los parece ter sido sempre meio preguiçosa por aqui. O grande historiador mineiro Diogo de Vasconcelos (1843-1927) quando trata das expedições dos bandeirantes pela terra mineira, diz que aqueles bravos avançaram por ela “servindo-lhes de norte o pico de algumas serras, que eram os faróis na penetração dos densíssimos matos..”. Assim, aos picos couberam alguns nomes, aos demais morros, quase nada, salvo se em locais relativamente planos. Estes são nomeados por sua condição estranha à paisagem. Mas no meio de uma serra, a maior parte deles permanece anônima e pagã. O que em grande parte parece até justificável, em nosso território de dimensões continentais. Haja nome para tanta coisa! Mas inquieta-me por que tantos habitantes locais, ao longo dos séculos, sequer se interessaram por chamar seus morros e montes disto ou daquilo.
Não conheço os Alpes e sua toponímia em pormenores. Nem preciso. Posso abrir um mapa confiável e ler como são chamados seus inúmeros picos, montes, vales, platôs, passagens, geleiras, etc. Os rios, cascatas, passagens, o que for. Ali estão nomeados com precisão. Se recorro a uma carta topográfica, além dos nomes, tenho acesso às altitudes máximas, médias, mínimas e intermediárias daqueles terrenos. Mas tente-se fazer o mesmo em nosso país! Encontramos altitudes, está certo. Nomes? Nem em sonhos.
A mesma coisa vale para as ilhas, cabos, rochedos, promontórios e o que mais se deita pelo mar da nossa pátria. Os mapas, em geral, silenciam quase completamente quanto a eles. Se buscarmos alguma informação mais profunda neste assunto, temos de recorrer às cartas náuticas, dificílimas de serem encontradas, quando não caríssimas, em muitos casos. Então, diante de tais obstáculos, pensamos: vamos recorrer ao conhecimento local. Mas que desilusão! Ninguém sabe dizer nada de nada.
Passei, recentemente, quase quinze dias percorrendo o extenso litoral de Ubatuba e Paraty. Conversei com gente que ali vivia, das mais diversas origens; mas, no caso em questão, com vistas ao que pesquisava, preferencialmente ouvindo a conversa de caiçaras, ou seus urbanizados descendentes: em suma, tratei com os nativos. Pois bem, não encontrei vivalma que me dissesse o nome – não falo nem dos montes e pontais – das ilhas que povoam aquelas praias e que, dia após dia podem vê-las plantadas diante deles. Senti tal comportamento não só como fruto da simples ignorância, mas, antes, de uma presunçosa ignorância. Só encontrei similar atestado de preguiça mental nalgumas vezes em que, visitando tal ou qual cidade, perguntei a alguns moradores dali, vizinhos de uma igreja, qual era o santo ali reverenciado, qual era o seu orago. E, para minha surpresa, ouvi a resposta: “Não sei. Sou evangélico!”. Ouvi isto de gente moça e velha. É de pasmar que certa incivilidade atinja tais níveis que acabe por voluntariamente ignorar a simples paisagem que se revela, quotidianamente, diante dos olhos locais.
Pois bem, na praia é a mesma coisa. O indivíduo passa, dia após dia, por mais de vinte anos, diante de uma ilha que se apresenta à sua frente. Trabalha, por outros tantos anos, defronte à mesma. E se perguntamos o nome dela, ignora-o completamente. Tenta-se outro informante, mais velho: o mesmo resultado. Com muita sorte, depara-se com algum pescador que ainda se lembre de alguma coisa. No mais, reina a mais profunda ignorância. Mas que não se invoque, como causa disto tudo, o eterno e retornável mito da suposta indolência do caiçara. O problema é de outro natureza, e grave: ninguém quer aprender mais nada, esta é a verdade. Contentam-se com o trivial, com as banalidades, com o que se pode adquirir e consumir, e tão só. Este é o novo mundo em que estamos mergulhando de cabeça e que não poupa sequer os românticos moradores do litoral, imersos em sua inocência e simplicidade, como julgam muitos, muito erroneamente, ainda hoje. Pois o “bom selvagem” morreu de tédio lendo Iracema no Ensino Médio. Índio não quer mais apito, espelho e miçangas: quer celular, tênis de marca e roupa de grife – o quê, no fundo, no fundo, é a mesma coisa...

[Publicado originalmente no jornal A Notícia, de Leme, SP, em 17 de dezembro de 2011].

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Notas praieiras – Parte I: A História do Mundo em três horas à beira-mar

A praia do pontal, em Paraty, não é a menina dos olhos dos fanáticos por mar, sol e areia. A água não parece muito limpa, e o mesmo, diria, das areias, freqüentadas por um número de cães muito maior do que o desejável. Os quiosques também não são lá grande coisa, à primeira vista – mas garanto que a segunda melhor caipirinha da cidade é servida ali. A paisagem também não é empolgante para os obsedados por praias oceânicas. Ela não passa de umas poucas centenas de metros, contida por um molhe de pedras, ao Sul, e por um morro, ao Norte, onde se encontra, oculto pela vegetação, o Forte Defensor Perpétuo. Mas nas fraldas deste morro, imersas no mar, encontram-se grandes e belas pedras, cobertas de cipós que parecem aparados com precisão por um hábil jardineiro e, no entanto, todo este efeito se dá pela água salgada, que àqueles dá tal feição e que não erode os rochedos locais, mas, antes, parece acariciá-los com brandura. Para o Oeste, há umas casas meio feias, pousadas não muito elegantes, e até mesmo um camping. Porém, olhando mais para o interior, um espesso arvoredo se eleva, ocupa o espaço, sobe por um desses morretes praianos meio raros em São Paulo ou no Rio de Janeiro – mais à feição dos Guararapes, em Recife, ou do outeiro do Carmo, em Olinda – em cujo topo assentam-se, imaculados sob a luz do sol, a capela e o cruzeiro do cemitério local, como numa paisagem de Guignard: um tanto brejeira, muito agradável e pitoresca, mas um tanto quanto insólita. Já para o Leste, lá estão as ilhas, os barcos e o mar absoluto.
Pois bem, este é o cenário. Vejamos alguns de seus personagens.
Numa tarde de quarta-feira, assim como noutras, anteriores e posteriores, minha mulher e eu estávamos ali, movidos pela necessidade de uma saudável mudança de ares. A poucos metros de nós, havia um jovem casal de canadenses: ele muito esguio; dela, se dissesse que era obesa, tal seria uma gentileza, pois sua enormidade era verdadeiramente colossal. Pouco adiante, um sujeito com ares de velho lobo do mar relegado à terra e a contragosto, tendo por companhia seu bem cuidado cão, um english springer spaniel, adestrado não para a caça de tiro, mas para arrancar mariscos dos fundo das areias, as quais escavava até quase nelas desaparecer: dele avistava-se apenas a cauda castanha, oscilante, tão logo intuía sua presa. Noutra direção, um casal da modernidade, ou da pós-modernidade, composto por dois rapazes: um chinês, ao sol, acompanhando-se sabe-se lá o que em seu tablet; e um belga, refugiando-se na sombra, entretido com um bom, velho, prosaico e insubstituível livro.
Minha mulher e eu, ao contrário de muitos compatriotas, temos verdadeiro horror à bajulação de estrangeiros em solo pátrio, esta perversão do conceito de hospitalidade em que se comprazem muitos, tratando por meio de verdadeiras micagens, quando não rebaixamento de conduta, qualquer estrangeiro que por aqui aporte. De modo que não demos muita atenção àqueles personagens. Preferimos nos voltar à divertida tarefa de recolher conchas da areia, para a futura montagem de um arranjo decorativo. Para matar o tempo antes que ele nos mate. Nesta divertida faina, em que nos revezávamos, uma menina, moreninha, e seu irmão, com ares de maranhenses ou caiçaras, se aproximam de minha mulher e lhe dizem algumas palavras incompreensíveis, mas nem tanto, a ponto de percebermos se tratarem de pequenos hindus. E num inglês meio estranho – do pensar em português para a versão inglesa, da parte de dois adultos, e do hindi, ou sabe-se lá que língua, para o inglês, por duas crianças – acabamos por nos entender e juntos colhemos conchas à beira do mar.
As horas se passaram, voltamo-nos a outros interesses, como as crianças, às suas brincadeiras. Quando delas nos despedimos, estavam, o menino e a menina, cobrindo de areia, tapando mesmo o buraco que aquele cachorro de linhas atrás cavara horas antes.
Diante do que vimos não houve como deixar de pensar se a História, esta mesma, a História, com “H” maiúsculo, não o seu registro, mas a sucessão dos fatos, também não se daria como nesta série de inocentes eventos praianos: numa terra distante, ocupada por um povo, outros vêm, das mais variadas origens, e tomam seu lugar; ainda outros passam apenas por ali; e as obras e trabalhos de uns sucumbem, sob uma simples diversão alheia, e de tudo, nada restando, sequer o testemunho. Refreio meu impulso de afirmar que a História poderia ser traduzida como “um buraco na areia feito por um cão inglês numa praia brasileira, e depois fechado por duas crianças hindus, algo feito à vista de todos e por todos esquecido”. Não divirjo completamente desta teoria, mas não a afirmo na íntegra. Acho que, sempre, existe algo mais a ser visto, em toda parte. Quer nos anais históricos, quer numa simples tarde de praia.

[Publicado originalmente no jornal A Notícia, de Leme, SP, em 10 de dezembro de 2011].

Gira a roda da fortuna: cai o Sultão

Já tratei neste espaço da chamada “Primavera árabe” (19 de março, Pausa para reflexão) e da queda e do linchamento do tirano líbio (22 de outubro passado, Kadafi: vivo, ditador; morto, cangaceiro).Mas eis que agora, com felicidade, tratarei da derrocada de um amiguinho de todos aqueles déspotas da mourama, o sultão Berlusconi.
Quando este magnata da televisão e imprensa italiana ascendeu ao poder, foi tratado como uma espécie de Sílvio Santos taciturno, porém mais bem sucedido financeira e politicamente do que nosso prestamista televisivo. Tão histriônico quanto seu xará brasileiro, Berlusconi era famoso por suas caras e bocas, muitas das quais lembravam as do execrado ditador Mussolini, seu conterrâneo. Mas boa parte da grande imprensa daqui parecia se recusar a ver isto. A mesma grande imprensa pátria que, diante de sua queda, parecia não se dar por achada, publicando trivialidades nas capas de suas principais revistas. Uma estampava: PEREIRÃO, ESSE [sic] MULHERÃO; outra Coma POUCO Viva MUITO (assim mesmo, sem vírgula); e ainda outra ETERNAMENTE JOVEM. E nem uma menção sobre Berlusconi na capa. Somente Carta Capital, a cada dia melhor, estampou o priápico régulo italiano, logo abaixo de seu título. Daí ser justa, justíssima, a consideração de seu editor-chefe, Mino Carta: “Veja, Época e IstoÉ parecem editadas, nem digo em outro planeta, em outra galáxia” (Carta Capital, 23 de novembro, p. 22).
A alcunha de Sultão cabe muito bem ao defuncto premiê italiano, segundo as várias denúncias quanto à sua pessoa e seu governo. Qual um déspota do Oriente, ele parecia não fazer distinção entre o público e o privado, gerindo o que era de todos como se seu o fosse. Fazia-se rodear por uma corte de acólitos, escolhidos a dedo, que referendavam e cumpriam suas ordens. Minou as instituições públicas, impondo sua vontade pessoal sobre elas. Reivindicou para si leis e privilégios especiais. Criou monopólios exclusivos seus, abocanhando mesmo o patrimônio do Estado. E chegou ao cúmulo de manter uma espécie de harém itinerante, com beldades escolhidas, algumas menores de idade, provindas de toda parte, brasileiras inclusive (dizem que até um brasileiro transexual, ou quase, talvez a versão moderna de um eunuco, fez parte de algum seu efêmero serralho). Ora, e tudo isto não evoca um sultão?
Fica-se imaginando qual será o seu destino. Acredito que, em breve, uma enxurrada de processos o cobrirá até o pescoço, senão mais além. E não serão brandos como os de cá. Estes, quando pegam um político, acusam-no de uma simples formação de quadrilha, o mesmo delito dos trios responsáveis pelo conto do vigário, atualizado no golpe do bilhete premiado. Na Itália, que lida com a máfia e congêneres, as leis contra o crime organizado são severas. E justas perante aos olhos da sociedade. Daí ser bem possível que Berlusconi e seus bilhões passem a levar uma vida nômade, como também em grande parte o fizeram os ex-presidentes Idi Amin Dada, Bokassa, Baby Doc, Carlos Salinas de Gortari e Alberto Fujimori. E que em boa companhia ele estaria! Mas mesmo que se livre das acusações, corre o risco de ter um fim semelhante ao de Pinochet: ser preso em terra estrangeira, por crimes cujo âmbito extrapolam as fronteiras nacionais. Mas, como disse anteriormente, evito os exercícios de futurologia. Só arrisco dizer que, acredito, pelo menos uma parte do que ele merece, ainda há de receber. E não é em dinheiro não, que este ele já acumulou de sobra, das maneiras mais descaradas quanto obscuras possíveis, segundo se afirma.
Porém uma correção tem de ser feita diante do muito que se assaca contra ele. Berlusconi foi acusado de ser altamente maquiavélico. De fato ele o foi, mas somente na caricatura do termo, a partir de uma leitura apressada que interpreta o maquiavelismo se como fundamentado quase que tão somente no princípio de que “os fins justificam os meios” e de que uma outra ética regeria os homens públicos, diferentes dos cidadãos comuns – já ouvimos este refrão, não faz muito tempo, em solo pátrio, como se tal se tratasse de uma absoluta novidade...
Pois o milanês Berlusconi nunca foi um bom seguidor do florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), nem de seu O Príncipe (1532, edição póstuma), porque destes só observou um conceito enviesado da virtù (a grosso modo, “virtude’), interpretando-a não como uma capacidade de adaptação aos fatos políticos que permitiria a permanência no poder, mas sim a existência de uma possibilidade de manipulação política dos fatos, para a conservação do poder. E, acostumado a tal conduta, nela perseverou, a ponto de não observar a mudança das coisas, quando elas se deram, e que provocaram sua queda.
Assim, também, ele ignorou outro ponto crucial da doutrina de Maquiavel, análogo à virtù: a fortuna (aqui é fortuna, mesmo, no sentido de “sorte” ou “fados”) e sua roda, sempre a girar, elevando uns e rebaixando outros: toda aquela soma de aspectos cambiantes, e absolutamente inevitáveis, que podem abater qualquer um, do rei ao pobre, da rês ao nobre. Talvez a tenha interpretado como a sua fortuna pessoal (aqui, monetária e financeira), achando que a mesma o livrasse dos caprichos da verdadeira Fortuna, esta implacável. Em suma, para o bem ou para o mal, Berlusconi foi canhestramente maquiavélico: não foi nem um príncipe perfeito, aos moldes do que preconizava aquele, nem sequer um bom leitor d’O Príncipe. E pagou por isto, e torçamos para que pague muito mais, por tudo o que fez e deixou de fazer.
Maquiavel era um florentino, agregado à poderosa família Médici que governou por muito tempo aquele ducado. Viviam eles às turras com a família Sforza, duques de Milão. Lá no Inferno, onde, segundo dizem, o autor d’O Príncipe se encontra desde sua morte, ou seja lá onde estiver, acredito que ele está dando gargalhadas pela queda do milanês Berlusconi.

[Publicado originalmente no jornal A Notícia, de Leme, SP, em 3 de dezembro de 2011].

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Crônicas Baianas – Parte IV: O Oxalá eucarístico, ou o Cristo demonizado

Pouca gente atenta para a etimologia das palavras, ainda menos se latinas, e ainda em menor número aos nomes científicos que, para muitos, parecem existentes desde sempre, quando não ditados por um Deus absoluto, ou pelo tagarela Adão, louco para nomear o tudo e o nada. Assim como o Primeiro teria dito Fiat lux (“faça-se a luz”) et facta est lux (“e a luz se fez”), o segundo, no julgar de muitos, provavelmente também exclamara, num momento desprezado pelos cronistas bíblicos, fiat camelus dromedarius, e o dromedário se fez, pronto e acabado, com nome científico e tudo, e à mesma feição de hoje em dia. Ou, como pensam outros, atendo-se às fontes, Javé fez o o bicho tal como ainda o vemos: coube ao ignaro Adão dar um nome à besta. Quanto ao idioma escolhido para nomeá-lo, séculos de estudos sobre o tema jamais chegaram a um ponto pacífico. Mas os fundamentalistas norte-americanos têm convicção de que a língua era a inglesa...
Assim, portanto, não é uma surpresa para muitos o significado da palavra passiflora, que denomina um gênero botânico de cerca de 500 espécies que tem no maracujá a mais conhecida delas. Um etimólogo tresloucado, falsamente estribando-se na lógica, explicaria a origem da seguinte maneira: “ora, o suco de maracujá acalma, torna a pessoa pacífica, passiva, ou apaziguada, portanto passiflora deve significar a flor (daí flora) e seu fruto, que traz a paz... ou algo assim”. Uma explicação tão bonita quanto errada, ainda que muita gente acredite piamente nisto. Pois passiflora significa, literalmente, “flor da paixão”. É por este motivo, aliás que, em francês, o fruto do maracujá se chama fruit de la passion (“fruto da paixão”). O mesmo etimólogo amalucado juntaria os termos “francês” e “paixão” (quem sabe se lembrando de que a expressão dá nome a uma marca de roupas íntimas femininas), e pensaria em arrebatadoras cenas românticas, quando não fortemente carnais, envolvendo sedas, champanhe, cama, etc., e até convertendo o maracujá em afrodisíaco, quem sabe.
O que pouquíssimas pessoas sabem – e que o nosso amigo meio passado das ideias jamais descobrirá – é que a paixão a que se refere o nome da flor vem a ser a Paixão de Cristo. E tal se deve ao fato das pretensas semelhanças encontradas, por missionários jesuítas da América do Sul, entre a flor do maracujá e elementos do martírio de Jesus: pois, segundo eles, o pistilo, os desenhos da corola e várias peças florais assemelhavam-se à coroa de espinhos, ao martelo e aos pregos da Crucificação – e a cor roxa do interior delas, à do luto litúrgico católico. Nascia, assim, a passifora, cujo primeiro registro encontra-se na Historia medicinal de las cosas que se traen de nuestras Indias Occidentales (1565-1574), do botânico espanhol Nicolás Monardes (1493-1588).
Outra fruta associada a Cristo é o abacaxi, ou ananás. “O quê?! Comparar o Salvador a um abacaxi!”, gritaria o nosso doido amigo supracitado. Pois é isto mesmo. Diversos religiosos nos séculos XVII e XVIII, e mesmo leigos católicos, viam naquele fruto um resumo alegórico de Jesus. Em primeiro lugar, por ambos terem um coroa de espinhos. A casca grossa tanto poderia significar Seu corpo flagelado, como, por seu aspecto, lembrar diamantes, símbolos da magnitude e incorruptível pureza de Sua Pessoa, ou ainda a excelsa recompensa que receberiam Seus seguidores. Considerando-se a casca e as dificuldades de rompê-la, estas remeteriam ao fato de que seguir Seu caminho não é fácil, mas o resultado é doce e certo e um alento para alma: um verdadeiro refresco às tribulações do mundo. Mas e se o abacaxi for azedo? Ácido também foi Cristo quanto aos pecadores, mas doce, no fundo, quanto à Humanidade. E se seu interior for branco? A candura do Cordeiro de Deus, então, se manifesta. E se for amarelo? O ouro, o supremo ouro, que outro melhor não poderia representar o Salvador.
Outra fruta associada a Cristo é o abacaxi, ou ananás. “O quê?! Comparar o Salvador a um abacaxi!”, gritaria o nosso doido amigo supracitado. Pois é isto mesmo. Diversos religiosos nos séculos XVII e XVIII, e mesmo leigos católicos, viam naquele fruto um resumo alegórico de Jesus. Em primeiro lugar, por ambos terem um coroa de espinhos. A casca grossa tanto poderia significar Seu corpo flagelado, como, por seu aspecto, lembrar diamantes, símbolos da magnitude e incorruptível pureza de Sua Pessoa, ou ainda a excelsa recompensa que receberiam Seus seguidores. Considerando-se a casca e as dificuldades de rompê-la, estas remeteriam ao fato de que seguir Seu caminho não é fácil, mas o resultado é doce e certo e um alento para alma: um verdadeiro refresco às tribulações do mundo. Mas e se o abacaxi for azedo? Ácido também foi Cristo quanto aos pecadores, mas doce, no fundo, quanto à Humanidade. E se seu interior for branco? A candura do Cordeiro de Deus, então, se manifesta. E se for amarelo? O ouro, o supremo ouro, que outro melhor não poderia representar o Salvador.
O leitor deve estar se perguntando o que quero dizer com tudo isto. Pois bem, minha intenção é revelar um mundo não muito distante em que tudo era encantado, o mesmo que permitiu ao poeta Cláudio Manuel da Costa vislumbrar na banana o fruto da Árvore do Conhecimento: pois, afinal, ao se cortar uma banana em rodelas, vemos, em seu interior, uma cruz. Em suma, mesmo na queda do Homem, já estava prevista a sua Salvação, como pregam as tradições religiosa e literária.
Na Bahia, esse encantamento do mundo ainda é, em boa parte, presente. Daí que o Cristo, ou o Senhor do Bonfim , é representado no candomblé pelo coco. Trata-se de uma adaptação realmente engenhosa e altamente lírica. Pois sem conhecerem a ideia do Livro de Deus (a Bíblia) e do Livro da Vida (o mundo), e suas correspondência (uma noção que justifica o tratamento dado outrora aos já citados maracujá, abacaxi e banana), sem conhecerem a escolástica, nem Alain de Lille (c. 1128-1202) e seu Rhythmus de incarnatione Christi, nem São Boaventura de Bagnoreggio (1221-1274) e seu Breviloquium, nem mesmo nada de Roger Bacon (1214-1294), procuraram a confirmação das Escrituras nas coisas do mundo, de seu mundo próximo e tangível. E, assim, a carne e o sangue da Eucaristia (Lc 22:19-20, Mt 26;26-29, Mc 14:22-25 e I Co 11:23-26), converteram-se na polpa e na água do coco! Desnecessário é dizer que o coco confunde-se com o crânio humano e, pronto, temos a referência ao Calvário e ao crânio de Adão sepultado em seu sopé. E depois chamam isto de sincretismo... Qual o quê! É pura interpretação alegórica, aplicada aos elementos que estavam à mão. Além de sumamente inspirado. Não tenho dúvidas, apesar da falta de registros, de que os jesuítas, excelentes pedagogos no passado – que celebraram missas em que as hóstias eram feitas de farinha de mandioca, no Brasil, e de arroz, na China, pelo profundo significado cultural que possuiam tais alimentos em tais ambientes –, se não referendassem a apropriação do coco como símbolo eucarístico, ao menos o tolerassem com benevolência.
Hoje em dia há seitas, proclamadas igrejas que, numa espécie de teologia reversa, na falta de uma própria, subvertem as de outrem, empregando termos alheios com sentido trocado, por sua incapacidade intelectual de formular os seus, para não dizer que tal se dá graças ao mutismo do Espírito Santo, que não lhes assopra ao ouvido nada de novo (mas este não é o meu campo). Estas congregações religiosas afirmam que os rituais afrobrasileiros são ditados pelo demônio. Segundo elas, todos os orixás seriam diabos. Assim, Oxalá, a interpretação africana do Senhor do Bonfim, seria, na verdade, uma criatura infernal! Ora, já vi, ou li, diversos tratamentos dados a Jesus – diábolos, foi um deles, na medida em que Ele acusava os erros anteriores e lançava uma nova Ordem; e Lúcifer também, por trazer a verdadeira luz aos seus fiéis – mas vê-lo passível de ser tratado, segundo a capenga teologia de algumas seitas, como uma espécie de demonhão africano, esta é de pasmar! E é de se perguntar: como uma visão tão natural e bela da Eucaristia, no coco, poderia ser inspirada por algum ser infernal?! Só na cabeça de gente sem ideias, sem compaixão nem reflexão: algumas das quais, por sinal, reunem-se num suntuoso templo que, em Salvador, é apelidado de “Casa da Moeda”...
Das ruínas de Salvador, uma fênix pode se levantar, já que nem tudo está perdido por lá. Certa tolerância, para não dizer um quase ecumenismo, ainda prevalece ali. Que as reflexões do grande Volney (citado em crônica anterior) finquem raízes. Que os povos as leiam. Que os fanáticos retratem-se. Que as ruínas, todas elas, recuem.

[Publicado originalmente no jornal A Notícia, de Leme, SP, em 26 de novembro de 2011].

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

As Crônicas Baianas: Parte III – As Ruínas, em ponto menor

O francês Constantin François Chassebœuf de La Giraudais (1757-1820), conde de Volney (nome pelo qual se tornou mais conhecido e que é a origem, ainda que em geral desconhecida, de todo indivíduo que se chame Volney, desde então), além de filósofo e político (uma contradição em nossos dias!), foi um orientalista e historiador de renome. Seu livro mais influente é, sem dúvida, As Ruínas, ou meditações sobre as revoluções dos impérios, publicado em 1791, depois de uma visita à antiga cidade romana de Palmira, localizada no território da atual Síria. Ali, pôde aquele autor observar as ruinosas condições de uma cidade outrora grande e influente, um verdadeiro símbolo do Império Romano em sua máxima extensão. E refletindo sobre Palmira, concluiu que os impérios, apesar de seus colossos que parecem lhes prometer uma vida eterna, acabam por perecer, vítimas que são de uma lei natural. Esta contemplação das ruínas e dos tempos passados, a partir da qual se pode tirar uma lição, é um tema quase tão velho quanto o mundo. Mas no agonizante Antigo Regime, no século XVIII, ele eclode em sua plenitude. Basta lembrarmos das estampas de Giovanni Battista Piranesi (1720-1778), das pinturas de Hubert Robert (1733-1808) e no rigor arqueológico dos prédios de John Soane (1753-1837), cuja planta (num “corte transversal”, se assim podemos nos referir àquela imagem) de sua mais importante obra, o Banco de Londres, foi desenhada como se aquele novíssimo prédio estivesse já em ruínas. Em suma, todos se davam conta de que um velho mundo estava em colapso.
O âmbito atingido por Volney naquele seu livro foi considerável – encontrei em Ouro Preto uma edição francesa de 1822, mesmo ano em que era traduzido em Portugal por Pedro Cyriaco da Silva, versão esta publicada até 1911, no Rio de Janeiro, pela Livraria Garnier, como atesta o exemplar que possuo. Tem-se também, como quase definitivamente acertado, que ele seria um precursor do Romantismo – e as imagens dos poemas homônimos Ozymandias (1818), tanto o de Percy Bysshe Shelley (1792-1822), quanto o de Horace Smith (1779-1849), na minha opinião, são provas disto. E há até quem diga que suas ideias chegaram aos conjurados baianos de 1798.
Uma prova eloquente do efeito simbólico das ruínas, porém atualizado, pode ser observada em Salvador, no monumento erigido ao príncipe herdeiro de um potentado baiano de notoriedade nacional falecido há poucos anos. Naquela cidade, próxima ao aeroporto, está uma estátua do (não tão) jovem sucessor do defunto dignitário, sobre o seu pedestal, em meio a uma praça cuidadosamente ajardinada. Diante de sua figura de bronze, encontra-se uma suntuosa fonte, que noutros tempos lançava jatos d’água coloridas artificialmente pela luz de holofotes, e jatos dançantes, em determinados horários, espetáculo este embalado pelos acordes musicais do Hino Nacional Brasileiro e do Hino da Bahia. Porém, desde que a morte depôs aquele neocoronel, tais mimos, com ares de praça do interior ou de número do Circo Orlando Orfei, já não mais são celebrados. Os canteiros ainda são muito bem cuidados e uma coroa de flores é depositada diariamente aos pés do enaltecido. Mas há pelo menos um guarda, dia e noite, zelando pelo conjunto da estátua, coroa de flores e fonte aos seus pés, num claríssimo sinal de que tal monumento conta com detratores. E todo esse zelo enfrenta severas críticas locais. Em suma: se tudo aquilo fosse uma unamidade, não era necessário um guarda para cuidar da traquitana. É, pois, uma ruína já: quanto aos fins e quanto ao uso.
Outros exemplos não faltam, pois as ruínas, físicas e morais, se suscedem e se amontoam por toda Salvador. Na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, por exemplo, anda-se na ponta dos pés, reprimem-se os espirros, evitam-se os gestos expansivos, tal o medo de que tudo desmorone. E o que dizer, então, da veneranda igreja da Celestial Ordem da Santíssima Trindade, próxima ao porto, diante da qual estarrecemos de medo: um simples olhar mais aplicado pareceu-nos motivo bastante para causar o seu colapso. Quem observa a favela Ocupação das Malvinas, que data daquela guerra entre Argentina e Reino Unido (e desta já lá se vão trinta anos), é incapaz de acreditar que tudo aquilo não caia, não desbarranque morro abaixo, com o simples soar de um bater de palmas. Sem falar na situação e no indizível nome de outra favela: Planeta dos Macacos, uma manifestação de racismo tão ignóbil que, até onde me conheço por gente, nunca vi igual. E tudo isto na “Capital da Alegria”. Penso que é mais “Capital da Tristeza”, isto sim!
A tristeza de Salvador, e da Bahia, faz lembrar a do planeta Marte, tal como idealizado pelo escritor norte-americano Ray Bradbury (1920) em seu livro Crônicas Marcianas (EUA, 1950) – obra que é uma vaga referência para esta série de escritos. Tal melancolia, por assim dizer, provém justamente do acúmulo de magníficas ruínas, quer as soteropolitanas da realidade, quer as marcianas da ficção, cujas funções originais vão sendo esquecidas ao longo do tempo, convertendo-se, muitas delas, num sutil registro de algo um tanto vago que pertenceu a um passado já dado como morto. Os fastos de um povo cujos descendentes tornaram-se invíveis: porque muitos deles, bem como sua cultura, pereceram, e porque outros tantos, os conquistadores, não querem vê-los, preferindo ignorar a situação em que vivem. Por outro lado, o novo, sem história nem tradição, que não comove nem envolve, qual as barracas do meio-oeste americano plantadas em Marte, da já citada obra, erguem-se, enraizam-se, espraiam-se por Salvador. Um exemplo? Durante minha estada ali, precisei cortar o cabelo. Pensei, imediatamente, num velho salão de barbeiro, onde escutaria os boatos de uma cidade inteira. Qual o quê! Não houve voz que praticamente não me obrigasse a fazê-lo num shopping center. Neste local, aliás, um funcionário jurou de pés juntos que eu encontraria o melhor acarajé – da Bahia, é claro – ali mesmo! O que não desminto, mas aqui entraríamos já num assunto que dá muito pano para pouca manga de camisa...
Retornando a Volney, por mais aparentemente negativista que fosse sua visão do mundo e das civilizações que o engendraram, foi ele capaz de uma interessante síntese do que poderia trazer paz à Terra, e possivelmente evitar a queda dos futuros impérios. Tratava-se da tolerância religiosa, o quê, noutros termos, poderia ser lido de uma única e singular maneira: a não condenação, por parte de um credo, de outras experiências religiosas. Mas, neste ponto, parece que os baianos seguiram a lição do francês. Ou, pelo menos, a melhor parte dela, como veremos, noutra ocasião. E vivas ao Bom Jesus, a São João Batista, a Apolo e Dioniso, e aos Orixás, com seu magnífico cortejo!

P.S. (Este completamente fora do assunto ora tratado): Na próxima semana, entre os dias 23 e 25/11, ocorre, no saguão do prédio das Faculdades de História e Geografia, da USP, na Cidade Universitária (Butantã, São Paulo), mais uma edição da Festa do Livro. Dezenas de grandes e pequenas editoras oferecem livros de seus catálogos com preços a partir de 50% (o mínimo para participarem) de desconto. Trata-se de uma ótima ocasião para quem gosta de ler — e se queixa que os livros são caros — de renovar suas leituras, formar seus acervos. É a demolição do álibi de muitos que não leem por preguiça, mas que, publicamente, culpam os altos custos dos livros por sua inércia enquanto não-leitores.

[Publicado originalmente no jornal A Notícia, de Leme, SP, em 19 de novembro de 2011].

P.P.S. A feira foi cancelada entre a publicação do texto acima e esta aqui no blog. Ela ocorrerá agora no prédio da Poli entre os dias 14 a 16 de dezembro. O puxão de orelhas original permanece inalterado.