sábado, 21 de outubro de 2023

Reflexão num dia de chuva

[TEXTO PUBLICADO EM 15 DE JANEIRO DE 2011].
A infindável temporada de chuvas que assolam grande parte do Sudeste brasileiro faz do guarda-chuva quase que uma peça obrigatória do vestuário masculino e, observa-se, a cada dia, do feminino também. Parece, de fato, que as mulheres se cansaram das sombrinhas que, na verdade, convenhamos, aliviam muito mais do sol forte do que das águas que caem do céu, quer por sua pequena área de proteção, quer pelo material de que são feitas. Aliás, guarda-chuvas e sombrinhas não são irmãos, nem formam um casal. O primeiro é uma adaptação dos guarda-sóis que já existiam na Suméria, no Egito, nas antigas Grécia e Roma, passando pelos pálios, reais e pontifícios, até mais ou menos desembocarem naqueles utilizadas pelos artistas paisagistas, quando pintavam junto à natureza, como retratados pelo satirista inglês James Gillray (1756-1815), e que constam de um auto-retrato do genial Francisco de Goya (1746-1828) e noutro, discreto, de Arnaud (ou Armand) Julien Pallière (1784-1862) numa vista de Vila Rica. Foi, portanto, a partir do século XIX, com o triunfo da Revelução Industrial, com a indiscutível supremacia britânica na produção de bens de consumo e na sua divulgação, que o guarda-chuva, com esta específica função, ganha o mundo. Tanto que diversos historiadores contam como os escravos brasileiros, por exemplo, tão logo obtida suas alforrias, compravam um par de sapatos – eram proibidos de usá-los, na condição servil – e um guarda-chuvas, como provas de sua cidadania. Por outro lado, há uma certa ironia quanto a influência britânica na coisa toda: os brasileiros cunharam o nome da peça através do francês, parapluie (literalmente, “parachuva”) ; em inglês, sempre foi chamado umbrella (“sombrinha”). Já, justamente, a sombrinha, que é reintroduzida na Europa no século XVIII pelo gosto das chinesices, alastra-se no XIX pelo japonismo (como antes estiveram apaixonados pelos objetos chineses, os europeus, desta vez, passaram a preferir os japoneses). Mas o fato é que a sombrinha sempre foi muito mais decorativa, coquette, do que uma eficaz proteção contra a chuva.Poucos objetos são mais prosaicos do que um guarda chuva. Não conheço uma pessoa sequer que não tenha usado um alguma vez na vida. Por outro lado, creio que pouca gente reflete o quão sofisticada é a estrutura do mesmo. As partes que armam o tecido protetor equivalem-se às tesouras dos telhados, e as superam porque são móveis, flexíveis e de uma leveza absoluta. Sempre que me deparo com as imagens daquelas grandes construções de ferro fundido do século XIX e princípio do XX, quer seja a Torre Eiffel ou a Estação da Luz, o Viaduto Santa Efigênia ou o desaparecido Palácio de Cristal, erguido em Londres nos tempos da Rainha Vitória, nunca deixo de refletir se não eram elas herdeiras, indiretas, da estrutura dos guarda chuvas, e cada vez mais me inclino à conclusão de que eram, sim, ao menos aparentadas umas e outras.Um reles, mísero guarda chuvas, conserva semelhanças também com uma arma. Alguns são praticamente acionados por uma espécie de gatilho. Todos possuem travas de segurança e, dependendo de suas dimensões, podem servir de eficientes porretes. Além disso, têm uma ponteira que, bem utilizada, é capaz até de machucar. E, por seu formato, guarda chuvas podem ser esgrimidos não tanto como uma espada ou florete, mas como um estoque: as bengalas que possuíam em seu interior uma fina e comprida lâmina, que delas poderia ser desembainhada e utilizada num confronto. Aliás, fabricaram-se muitos guarda chuvas que eram também estoques. E outros capazes mesmo de disparar de um a dois tiros graças a um processo semelhante de embutimento. Num caso, a haste servia de bainha. No outro, de alma do cano, sendo o gatilho e o percussor instalados no punho, no gancho da peça. Um exemplar do primeiro deles pode ser visto no filme Os Vingadores (The Avengers, EUA, 1998) bem como na série televisiva que a precedeu (Ing., 1968-1969). Já do segundo pode-se que eram relativamente comuns nos acervos de provas da polícia civil brasileira. Depois da caça contra as armas no Brasil, acredito que muitas delas foram destruídas. Mas no Museu da Polícia de São Paulo, sei que existe pelo menos um remanescente. De minha parte, confesso, já utilizei diversas vezes um bom e vigoroso guarda chuva como arma de defesa. Quer fosse espantando uns grandes e rabugentos cães com os quais me deparava em certas madrugadas ouropretanas, quer enfrentando outros, com ares de raivosos, em pleno sol marianense. Trespassei, com a ponteira, mais de uma aranha venenosa, e pude espantar pelo menos meia dúzia de tipos suspeitos. Uma das seqüências que mais admiro na história do cinema encontra-se no filme Indiana Jones e a última cruzada (EUA, 1989). Ela tem início com o ataque de um avião contra os protagonistas que leva o personagem Henry Jones Sênior, ou I, (o pai do protagonista, papel desempenhado magistralmente por Sean Connery), numa praia que julgo ser da Dalmácia, eis que saca de seu guarda-chuva, tal qual fosse uma espada, preso à sua mala, abrindo-o e avançando contra um grupo de gaivotas. Desorientadas, as aves voam em direção da aeoronave a ponto de derrubá-la, livrando os heróis da morte. Enquanto caminha pela praia o velho herói justifica seus atos baseando-se numa súbita recordação de uma frase atribuída ao Imperador Carlos Magno (c. 742-814): “Que meus exércitos sejam as rochas, as árvores e as aves do céu”. Como disse, atribuída a Carlos Magno, pois não se tem notícia exata de sua autoria. Nem de seu vínculo àquele monarca. Mas tudo isto não importa. A cena é bela e mostra como a erudição, aliada até a uma coisa reles como um guarda-chuva, é capaz de insondáveis prodígios. Em suma, não desdenhemos destes objetos aparentemente tão comuns. E cada vez mais freges, estes vindos da China. Sua engenharia, no fundo, é notável. Sua utilidade, óbvia. E, pelo jeito que o tempo tem mudado neste país, cada vez mais tornam-se eles indispensáveis. Viva o bisonho guarda-chuva

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